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Deus devolve o rev​ó​lver

by Régis Bonvicino & Rodrigo Dário

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1.
A nova utopia é uma borboleta negra, desatenta, com olhos exuberantes. A nova utopia é a favor da proteção implacável dos animais. A nova utopia é inclusiva, participativa. A nova utopia é o coro afinado dos descontentes. É um ex-guerrilheiro, de porte avantajado, homem forte do governo. A nova utopia tem informações privilegiadas, disponíveis. É um ex-leproso. A nova utopia rechaça a figura de Nossa Senhora se masturbando. A nova utopia defende os direitos das trabalhadoras do sexo. A nova utopia comunga, com moderação, ideais materialistas. A nova utopia morre de pé. É, ao mesmo tempo, um duty free e um detox financeiro. A nova utopia é nosso dever como cidadãos. A nova utopia exalta a sustentabilidade das empresas. A nova utopia sabe que se pode ser árabe e muçulmano, árabe e não muçulmano, muçulmano sem ser árabe. Negro sem ser branco, branco sem ser negro. A nova utopia é a liberdade de expressão do Le Monde, reassegurada desde sempre. A nova utopia é um ajuste de contas contra o obscurantismo dos outros. A nova utopia rejeita factoides politicamente úteis. A nova utopia é um pouco xiita, apenas quando estritamente inevitável. É um turista americano visitando o Museu Abu Ghraib. A nova utopia tem logo e slogan. Condena chacinas na periferia. A nova utopia emite notas de repúdio, lança abaixo-assinados; defende o grafite; a nova utopia prega a bicicleta. A nova utopia é o respeito incondicional ao nanismo. Condena corruptos. É um ex-ladrão. Tem seu próprio dicionário. Pensa antes de agir. Repele palavras e pede ação. A nova utopia é um ex-coxo. É a asa aberta do voo. É um showroom de exuberâncias naturais. É um céu com nuvens negras, sob controle. É uma estante de livros num banheiro. É a viúva de Jorge Luis Borges detalhando seu processo de criação. A nova utopia é um ex-macumbeiro, um ex-bêbado, é um ex-exu sujo. É um branco de alma preta. A nova utopia é ainda o indígena de tocheiro, fazendo política, diariamente, nas redes sociais. A nova utopia é uma ex-esteticista de unhas postiças. É um espião trans pegando sol num roteador. É um ex-selvagem. É uma ex-vadia. É um ex-puto. É uma entendida. É um ex-pária. É uma míriade de franquias de poetas premiados. É um poema à altura de seu tempo.
2.
Vinheta (1) 00:11
“Boa noite. Deus devolve o revólver”
3.
Ficção 01:48
Pendurada de cabeça para baixo via ao contrário a coluna em estilo coríntio da antiga estação de trem o poder político dos estoques as sacas de café, Bolsa de Nova York, camionetes queimadas um som adocicava o Largo talvez fosse o de uma nova canção dos Beatles “Metralhado e morto outro facínora” você com essa cara de filha de Maria uma paulada na coluna quebra as vértebras dessa puta boca fechada, o aparelho intacto flashback íntimo o apontamento entre as páginas de um livro o porta-malas do camburão as manchetes nas bancas “O PIB vai a 10%”, “Prisioneiros viajam hoje”, alívio baratas na vagina corte, tesoura, um talho no sutiã tesoura roçando os seios pode pisar neles barata devidamente arquivada no cu o capuz, cabeça enfiada na água suja os gritos sem porrada ramos de café perfilam o capitel portas maciças da altura do edifício Itália as teclas da pianola em outro andar, mãos algemadas nu na cadeira do dragão o corpo do cara ficou odara
4.
Sermão 01:26
Uma joint-venture de sem tetos, pele e osso, com medo da polícia, aglomerada no centro histórico de São Luís, mais de meia-noite, um dos mendigos, bêbado, diz palavras ao vento botaram Ford Landau no convento padre não prega mais de costas – contra – como Vieira, mas de joelhos me ouçam logo de novo os peixes tambor também não põe a mesa galinha morta é veneno o boi-bumbá só tem cordeiro para que serve tanto azulejo? botaram mais um ladro no governo urubu bica pedregulho mato nasce em telhado o duque pega tudo é bem mais de 10% lenda é passatempo ganja é coisa de regueiro o mendigo há de subir com o crack na cabeça moeda aqui cai somente no bueiro escadaria é monumento miséria aqui é matinê é bom guardar segredo cavalo não defeca mais dinheiro
5.
“A mão que afaga é a mesma que apedreja Apedreja essa mão vil que te afaga”
6.
7.
Álibi 01:58
Oh, Pai, tende piedade dos zilionários, dos vendedores legais de armas dos lobistas, do dinheiro farto dos narcos dos unhas de fome, dos gigolôs dos cassinos dos traficantes de iguanas, rim e fígado Oh, Pai, tende piedade dos banqueiros, dos juros sobre juros, do laissez-faire chinês, do marketing do bem dos plutocratas, dos fundos-abutres garras, o condor-dos-andes não canta Oh, Pai, tende piedade dos meões do dinheiro sujo dos contratos públicos daqueles que depreciam os papéis de P.P. Pasolini daqueles que lavam dinheiro com H. Matisse misericórdia divina, delícia e êxtase dos santos Oh, Pai, tende piedade dos xeques, dos grandes proprietários de terra daqueles que não entregam a lebre dos traficantes de marfim, caveiras com dentes e pedras da criptomoeda, dos chefetes políticos despóticos Oh, Pai, tende piedade dos traficantes de lixo eletrônico, dos agiotas dos matadores de aluguel, dos guarda-costas dos sócios ocultos, dos donos de offshores Oh, Pai, sobretudo tende piedade de nosso honrado boss.
8.
Tarde 01:02
Junto ao muro arbustos, cactos um deles, pontiagudo, alto, avança na calçada um grupo de nuvens cinza pesa no ombro de uma mendiga negra que passa poste, fios, janela, uma gambiarra um carro pifado na guia a um passo da avenida parede de cubos de vidro edifício, canteiro de espinhos, dorme estirado a uma certa distância da entrada cabeça sobre a garrafa vazia de água o sol de inverno bate direto em sua cara roupas do corpo, sem sapatos, não tem mais nada, não tem spleen só tem porrada
9.
Perspectiva 01:06
Muro baixo do cemitério um galho da tipuana atravessa o arame farpado, túmulos à vista, altos duas cruzes de mármore do lado oposto da rua um cara estirado na calçada debaixo das grades da janela do térreo o motorista dá a partida um casal: o marido empurra o carrinho do bebê pessoas entram no edifício de tijolos à vista na pequena casa geminada: consertos rápidos, costureira na máquina um gavião pousa numa antena o cara acorda olha para as grades, mija na parede, mais uma loja fecha a de aluguel de fantasias, roupas para teatro e cinema um mendigo se apaga nessas linhas outro reaparece na cena
10.
Uma carroça cruza a pista carregada de garrafas, caixas, cabos, um motor Sábado à tarde, fim de verão, lojas fechadas o sol bate nos letreiros cachorros disputam um saco de lixo ônibus passam, meio vazios um motorista para no ponto de táxi vestidos de núpcias, vitrines, Miss Luxúria gambiarras nos postes fios atravessam a copa de uma goiabeira na esquina da rua Oriente com a rua Casemiro de Abreu nuvens, o mormaço, atrás das folhas, se atenua uma única flor, pétalas brancas, estames amarelos, abrupta uma letra pende do alto da porta de uma loja um mendigo dorme cabeça largada na mureta do canteiro goiabas apodrecem em autópsia mútua
11.
Trailer 01:14
Um cara descarta o resto do sanduíche recostada no pé da lixeira um pedaço de pão cai na cabeça da mendiga, um outro cara joga um maço de cigarros vazio a mulher é negra, umas garotas, lata de pepsi, casca de sorvete lojas, o logo do banco, câmeras um cara atravessa na faixa ela pede esmola: “Eu não sou artista” o executivo olha para o outro lado da avenida um camelô entra na calçada o dia porra tem que valer a pena no quiosque, a manchete: “O desemprego aumenta” um obeso mórbido passa, camiseta branca, encharcada de suor, a raiz do fícus força as bordas do canteiro sem nenhum puto entre os dedos a câmera pifa, ela sai de cena
12.
Lápide 00:09
Os soluços longos dos violinos do outono aqui Rimbaud aquele otário te enrabou por uns trocados
13.
Haiku 01:29
Pedra no cachimbo Estação da Luz: porrada Verão, sol lilás Pedra, narguilé Doce como mel: porrada Verão, o sol âmbar É o Incrível Hulk Um avião nos pés: porrada Janeiro, sol púrpura Uns tragos na lata De asas já nos pés: porrada Março, sol turquesa Cachimbo, cristal Braços alados, porrada Março, um raio fúcsia Lata sem anel O anu bica o olho do noia Isqueiro na dobra Pedra no cachimbo Arco-íris nos pés, porrada Dezembro, sol sépia Canudo, Yakult Mãos lixam o céu, porrada Março, sol magenta Cachimbo na roda Garras de tigre, porrada Janeiro, sol jade Em nome de Buda, Nada obstante uma brisa Verão, sol sem cor Cavalo, porrada O tubo de pvc Outono, sol ágata
14.
Vinheta (3) 00:14
Deus devolve o revólver
15.
Luz 01:03
Sucateiro rastafari sentado na mureta, cabeça baixa sob as palmeiras do largo pés na mochila, garrafas pet player do ecossistema global um rato entra no bueiro. O relógio da Luz sob um sol de rachar daqui é apenas uma torre o vapor sobe do asfalto. Cicatriz na cara da puta pista dupla, atravessa a avenida short verde, blusa regata cabelo curto, o michê esfria os muros exalam um cheiro de urina. A noite abate o dia um cachorro fareja, tranquilo, a calçada limpa, outro, órfão de um noia, uiva na esquina.
16.
17.
Vinheta (4) 00:50
18.
Perto de uma sinagoga, enquanto o faxineiro varre a entrada do prédio, um catador, velho, de barba rala, pega uma latrina na caçamba Outro catador, boné branco, “ulalá” grafado em azul acima da aba,  dois dentes podres à vista, repete em voz alta: “o lixo é sujo” Na banca, uma tevê: ataques na Síria bombas na cara dos civis Outro sucateiro, de mãe talvez zíngara, saco plástico preto, aberto, percorre a calçada latas vazias de Pepsi, Coca, cerveja pede na lanchonete, no self-service, no bistrô Na saída do shopping militantes coletam assinaturas para um manifesto em favor das abelhas, ágora na hora da xepa, um santinho da Virgem colado no poste um garoto negro, quase no ponto de ônibus, um par de baseados no bolso, é preso em flagrante, por tráfico? leva porrada na rua, ora pro nobis camburão, algemas deus devolve o revólver
19.
É um discurso estritamente atrelado à realidade É um inferno fiscal É uma empresa real É o lado útil da palavra É uma brancaiada tola É a nota mínima É o aplicativo Equitable É um café da manhã sem lactose É a cerveja sem álcool e o cigarro eletrônico É uma prece, e não a Ave Maria, sussurrada num beco de uma favela É um sinônimo de vândalo É o alarme contra o impacto ambiental de um passeio de barco É um protesto contra aulas de inglês É uma tr@b@lh@dor@ em transição de empregos É um supervilão asfixiando apenas machos É um chá com escritores do website e do jornal É um pet sem sobrepeso É a queda programada da taxa de juros É um ladrão de galinhas É um desvio de verbas públicas É a vítima de um assalto se desculpando com o assaltante É a redenção ecológica do joio É um approach jurídico para o diabo É um cego paraolímpico É um antiverso altamente subversivo É um alvo potencial do terrorismo linguístico É um drácula hard-core doando sangue É o direito à segunda via garantido É um morador de rua revirando uma lata de lixo seletivo É o produto da venda legal de armas Violinos afinam a brisa fétida É uma lavagem de palavras É uma filha convicta da pátria
20.
O sol da manhã bate em sua cara deitada no chão rente à mureta do parque fios de cabelo branco escapam da tiara cabeça sobre a bolsa em frente à torre do relógio da estação hibiscos vermelhos: renques ao longo das grades mão sobre o rosto talvez ela tenha chegado no último trem da noite talvez ela não esteja dormindo talvez ela esteja sem clientes vestido longo cinza sapatos baixos, pele seca dos pés talvez ela esteja a caminho do emprego talvez ela vá pegar o metrô a polícia aqui não mata todos os dias ao fundo palmeiras em linha mendigo negro, cabeça baixa, de novo, sentado na guia um ambulante vende água talvez ela tenha escrito os versos: “desatenta, fui castigada, passei a vida ao largo”. talvez ela tenha feito algum dinheiro talvez ela seja figurante de um filme talvez ela seja um cartaz perdido a luz, rasante, incide sobre as rugas de seu rosto a mandíbula de uma arara um gavião pousa no topo de um cedro mais alto que os prédios talvez ela seja um acará ou uma carpa espelhos d’água uma andorinha, fosforescente, sobrevoa a grade talvez ela não seja mais que um efeito de arte talvez ela não passe de um close-up
21.
Manhã, janela do quarto do hotel: o carroceiro puxa a carroça uma van da Transcootour passa pés descalços no asfalto gaivotas e urubus se encaram por lixo, peixes e céu banhistas em sua rotina mecânica de sol, areia e ginástica duas putas insones roçam os peitos nos vidros de um Honda Civic. A garota de Ipanema de Vinícius e Tom Jobim mora hoje em Arrelia, Andaraí é mais que um poema paga o dízimo, da igreja e da milícia, ônibus lotado, caindo aos pedaços, de moto, um PM arranca o celular hoje pelo menos faltou presunto a caminho do mar, e sua irmã gêmea, a coisa mais linda, mora com o gigolô da boca em Drummond, Cachambi Papelotes de cristal e cocaína no sutiã à noite, frequenta o Leblon Troca de tiros na web e na tevê Complexo da Maré, Bossa Nova nightmare Publicado em Le Monde Diplomatique sob o título “Copacabana classic”, 1º de dezembro de 2008, reescrito em 2018
22.
The new utopia is a black butterfly, inattentive, with lush eyes. The new utopia is in favor of the ruthless protection of animals. The new utopia is inclusionary, participatory. The new utopia is a tuned chorus of discontent. Is a burly ex guerrilla, a government strongman. The new utopia has insider information available. It is an ex leprosy patient. The new utopia rejects the figure of Our Lady masturbating. The new utopia fights for the rights of sex work service providers. The new utopia shares, in moderation, materialistic ideals. The new utopia dies standing. It sells both duty-free items and financial detox. The new utopia is our civic duty. The new utopia praises corporate sustainability. The new utopia knows you can be an Arab and a Muslim, an Arab and not a Muslim, a Muslim and not an Arab. You can be Black without being White, White without being Black. The new utopia is Le Monde’s freedom of expression enshrined forever. The new utopia is a reckoning against the obscurantism of others. The new utopia rejects politically expedient factoids. The new utopia is a bit Shiite, only when strictly unavoidable. Is an American tourist visiting the Abu Ghraib Museum. The new utopia has logos and slogans. Denounces killings in poor neighborhoods. The new utopia condemns actions, circulates petitions; it champions graffiti; the new utopia advocates bikes. The new utopia is unconditional respect for underachievers. Condemns corrupt leaders. Is an ex crook. It uses its own dictionary. Looks before it leaps. Rejects words and calls for action. The new utopia is an ex amputee. Is an open wing in flight. Is a showroom of natural lushness. Is a sky with dark clouds under control. Is a bookcase in a bathroom. Is the widow of Jorge Luis Borges explaining his creative process. The new utopia is an ex macumba devotee, an ex drunk, an ex Exu punk. Is a whitie with a Black soul. The new utopia is also the torch-bearing Native politicking daily on social networks. The new utopia is an ex beautician with nail extensions. Is a trans spy catching some sun on a router. Is an ex savage. Is an ex bitch. Is an ex hustler. Is a lesbian. Is an ex pariah. Is a myriad of prize-winning poet franchises. Is a poem in tune with the times. Translated by Odile Cisneros
23.
To dream has been the business of my life. A nova utopia mata por adição e, entre outras coisas, por agonismo opioide. Faz seu inimigo sentir náuseas, sonolência, vertigem, vômitos, dor de cabeça, pressão baixa e choque. Faz seu inimigo falar com voz de lixa: ela não brinca em serviço. A nova utopia não é um despropósito. O novo utopista não é um dândi da sombra. É o drone suicida roubado da Kalashnikov: carrega explosivos e abre caminhos na selva, na favela, nas cidades. Tudo pela causa. Também ecológica, é a favor de cocaína batizada com pó de nenúfar. É a favor, unicamente, de obras como as de Shakespeare a cada manhã. A nova utopia – mirando um futuro melhor – faz tráfico limpo. O raio de sol só aparece à noite, para desanuviar. Pense, pense, você está na Terra: não há remédio. Fique tranquila, numa boa. Tantos miligramas de Depakote, tantos de Topiramato, a bula do Aristab – a rotina diária sem tréguas de pílulas por uma década. Comece por Zyprexa. Um robô morre em Marte. Um cara atira, entre prateleiras, contra a própria cabeça dentro da farmácia. Nada, absolutamente nada, mais um saco de merda sem qualquer mérito. Má notícia não existe. Dinheiro não fede. A chuva, a chuva, a tempestade, uma enxurrada de lixo sobe dos bueiros às ruas. Sob a marquise, um bispo se esgoela num megafone: “botar um baseado nos lábios é como fazer sexo oral para o diabo”. Só pode ser o trecho de um filme, ouça o refrão da música: “eles disseram que o inferno ferve”. O novo utopista é um sicário indie. É chefe e servo de si mesmo. É uma fera. Atira de bate-pronto nos sequestradores de cérebros e nos revendedores de memória, que operam o mercado negro. Mata de verdade. É a favor do copyright. É contra o copyleft. O novo utopista aplica doses pesadas de morfina nos algoritmos. Para ele, o algoritmo atropela o trabalho. Outra cena? Crack é a vitória. Um mendigo puxa uma pedra na lata amassada de Coca-Cola. O novo utopista batalha pela liberdade entre muros. Pede a benção à deusa guarani Jururá-Açú para assassinar o diabo do velho utopista. À semelhança dela, entra e sai do inferno como quem troca de camisa. Não faz papel de morto coadjuvante. O ódio move mais do que qualquer programa político. Só pode ser mesmo um filme. Olhe o décor. Trabalha também com fungos alucinógenos e LSD, para fazer mais grana para a luta. É um ponto de partida. Por que dizer isto aqui? Cai o letreiro: tantos miligramas de Quetiapina, o antipsicótico atípico, as bulas, o Latuda: para que desespero? Johnson & Johnson, Pfizer, Merck & Co, Bayer, Novartis, EMS Corp, Roche holding, Libra. Um grito talvez em off se ouça no cenário. Uma garota se joga do topo do edifício. Sonhar, sonhar, sonhar, é o grande negócio da vida!
24.
Reação 00:09

about

Os poemas de Régis Bonvicino, na forma mais direta
de descrevê-los tecnicamente, apresentam ondas sucessivas
de écfrases paratáticas, descrições e colagens de corte seco
de cenas de rua da megalópole, cujo protagonismo forçado,
gauche, cabe desde logo aos mendigos. Das écfrases,
Régis explora notadamente duas direções: de um lado,
a das contradições em relação aos enunciados da política
neoliberal, em que a riqueza é entendida como multiplicação
da pobreza, e o investimento como operação inalterada por
mãos humanas.

De outro lado, o que é mais surpreendente e o que, em
geral, reserva para o fecho dos poemas, Régis desenvolve
a ideia de que toda a miséria visível está reconstruída em
nossas mentes como roteiro de um reality show monstruoso,
de cuja existência os poemas apenas chegam a ser pistas. As
histórias de vida, nesse caso, não surgem como experiência
real de seres destruídos pela história, mas sim como efeito
11 de uma inércia narrativa que remete à própria composição
do poema. Isto é, a poesia que se lê é a poesia que lida com
a sua fatalidade própria, de iluminar vidas perdidas, destinos
miseráveis, situações abjetas que está obrigada a anotar, sem
escapatória. Em suma, como condenação que está obrigada
a encenar e que finalmente se abate sobre si mesma: fazer
poesia como acender a sua pedra e consumi-la, como poesia
da desgraça própria e intransferível.

Em ambas as direções, a da contradição histórica e a da
condição terrível em que nasce a poesia de Régis Bonvicino,
o tratamento eletrônico de Rodrigo Dário, cuja origem parece
estar no industrial rock dos anos 1990, acentua uma espécie
de urgência paradoxal em meio ao vazio e à desolação já
instalados. Alertas e sirenes disparam sobre um maquinismo
monocórdio, grave/agudo, recitado, atrofiado. Ecos
reverberam ameaçadores sobre uma paisagem distópica.
A poesia de Régis, nesse estranho álbum, ganha qualquer
toque lynchiano, que acentua muito apropriadamente a sua
natureza quebrada, sombria e catastrófica.

Texto retirado do prefácio de "Deus devolve o revólver" por Alcir Pécora

credits

released December 21, 2019

Poemas do livro inédito A nova utopia, de Régis Bonvicino
Leitura dos poemas: Caroline De Comi, Charles Bernstein e Régis Bonvicino
Produção, sonorizações, mixagem e capa: Rodrigo Dário
Edição e captação de som: Tamires Pistoresi
Foto de capa: Wladimir Fontes

Gravado em São Paulo, de março a julho de 2019, no estúdio Espaço-som, Rua Teodoro Sampaio, 462 e 512 , Pinheiros - CEP: 05405-050

2019 © Régis Bonvicino ® De Lírio Records
Produzido em 2019 no estúdio Toca do Macaco da De Lírio Records;

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